Exercício

De repente todo mundo ficou um pouco sem graça e não tenho vontade de conversar com mais ninguém. Só ela responde a altura minhas provocações e sabe me levar aonde eu quero estar. Aguardo seu sinal pra que tudo comece, mas o tempo teima em nos afastar.

De repente o céu ficou diferente e o azul não é mais qualquer azul. Não vejo rostos e tropeço em pedras. Esqueci dos sapatos e agora o dedo sangra um pouquinho, bem no cantinho. Enquanto caminho, a sombra de um sorriso que um dia habitou meu rosto reaparece. Gosto de rir sozinho e de me fazer confidências. Revelo ao meu íntimo coisas que só eu sei.

De repente tudo ficou pequeno e só meus passos são importantes. Gosto de imaginá-la pensando em mim e do abraço forte que me dará no fim do dia. Gosto quando me chama daquele jeito carinhoso e quando adormecemos juntos, exausto de nos olharmos. Gosto de fazê-la sorrir. Permito que ela me domine só para admirar sua expressão de satisfação. Gosto de provocá-la e observar sua inquietação quando seus argumentos fogem. Gosto de planejar nosso futuro.

De repente ela não está mais aqui e minhas palavras ocultas não a alcançam.

De repente ela surge e diz que precisa ir. Lança seu perfume e me confude com suas pernas à mostra. Sabe muito de mim e não conhece minha pele. Acredita nas minhas dissimulações e finge que tanto faz.

De repente não estamos mais em lugar nenhum e meu sorriso caminha ao lado, procurando rostos para brilhar. Meu coração se acelera e meus dentes amarelam como resultado da cafeína que ela me fez consumir. Logo eu, que odiava café. Logo eu, que estava feliz no meu sem rumo milimetricamente coordenado. Logo eu, que não sei escrever palavras bonitas. Logo eu, que já passei da hora.

De repente ela vai embora e me deixa como quer.

De repente ela se levanta. Ajeita seu cabelo enquanto caminha ao meu encontro, uma perna após a outra, num movimento contínuo que me entontece. Ela sabe me levar para onde eu quero estar.

De repente meu sorriso encontra a sombra do que um dia foi seu céu.