Israel é aqui

Não sei se era a roupa em tom pastel ou a minha cara de bobo, mas hoje, um fenômeno recorrente alcançou níveis inéditos. Começou no ponto do ônibus. A culpa foi minha. Não me cuidei. O ponto de ônibus é um dos principais lugares pra que isso ocorra. Quando você se dá conta já está lá, servindo de muro das lamentações.

Ela tinha 57 anos. Alias, 56. Faz 57 “agora, dia 21 de abril”. Isso mesmo, Dia de Tiradentes, mártir da Inconfidência Mineira. Hoje o mártir foi eu. O esquartejamento começou pelas orelhas, minhas pobres orelhas. Em três anos já teria 60! Incrível, não! Antigamente as pessoas nessa idade já eram bem velhinhas... Hoje em dia não! Mas também ela se cuida.

A análise ocorreu por volta das 10h30 e ela já tinha corrido (acho que só caminhado, na verdade), patinado, jogado pinball e feito hidroginástica (agora você acredita, né?). Pensei no que eu tinha a ver com tudo isso e em que mal eu teria feito para merecer aquilo (minha formação cristã e católica não me deixa).

Será que ela não viu os fones no meu ouvido!? Vai ver é a catarata... Mas poderia piorar... será?

PIOROU (assim mesmo, em caixa alta)

Pode ter certeza. Após um relacionamento de 17 anos ela foi trocada por uma mulher mais nova! Nove anos mais nova! Esses homens... Isso tudo só serviu pra me mostrar como o conceito de velho e novo pode ser relativo.

Pode piorar? Vamos tentar!

A senhorinha que falava sem intervalos começou com o discurso-dor-de-cotovelo:

- Mas também, meu filho, não perdi muita coisa...

(não, não sou seu filho graças ao bom deus a que tanto você se refere!)

- E sabe por que não perdi muita coisa?

(por favor, não me conte!!!!)

- Ele era diabético, hipertenso, calvo e barrigudo... sabe como é, né... com isso tudo a pessoa já não é como antes...

(o calvo e barrigudo eu inventei. não, eu não sei nem quero saber como é. também tenho raiva de quem sabe)

- Depois que terminei com ele fiquei muito doente. Uma doença do espírito, que reflete no corpo e blábláblá...

(agora ela enumerou as doenças uma a uma e o samba que tocava no mp3 se transformou em uma tragédia)

- Mas agora me reergui!!!

(com todas essas exclamações mesmo. enquanto mostrava o pescoço, continuou)

- To cuidando de mim. To fazendo plástica e colocando tudo em cima!!!

(pensei que ela ia segurar os peitos e pressiona-los, enquanto levava-os para o alto. não fez. por pouco, eu acho)

- Agora mesmo to indo ao médico. Primeiro tenho uma consulta com o psicólogo e depois com o psiquiatra.

(agora ta tudo explicado... e o papo mudou sem eu entender como)

- Meus filhos estão casados. Gosto deles... penso neles, mas quero cuidar de mim. A pior dor que tem é a morte. Já falei com Deus sobre isso... morte dói muito.

(e contou sobre todas as pessoas que enterrou. sol na cabeça e facada no peito. o samba virou tragédia. um samba-tragédia)

O ônibus chegou (finalmente!!! Assim mesmo, com todas essas exclamações). A senhorinha, quer dizer, a moça de 56, quase 57 anos, sentou-se no único banco duplo vazio. Olhava pra mim como quem esperava companhia para a viagem. Pensei no quanto poderíamos conversar e decidi sentar o mais longe possível dela. Papo de ônibus não dá, né. Já sofri muito com o papo de ponto de ônibus.